segunda-feira, 12 de novembro de 2012

A Última Vez Que Eu Vi Henrico



A última vez que eu vi Henrico foi quando ele têve aqui na cidade. Tava de passagem só, nem veio pra dormir por aqui. Tava resolvendo os problemas da mãe; que era recém-falecida e que, aliás, por ser recém-falecida não tinha problema algum. Tinha sim, deixado uma casa, coisa e tal... Ele veio pra falar com a irmã, dividir bens eu acho. Ele num vinha à Bahia havia cinco anos.

Henrico era meu amigo, daqueles que agente encontra uma ou duas vezes na vida, no máximo três. É possível ter três bons amigos na vida. Eu mesmo tive quatro: o Henrico, o Fernando, que também já morreu, o Soares e... Não, eu só tive três. Mas o Henrico era especial, a gente nunca perdeu o contato. Mentira. A gente perdeu o contato.

O Henrico era aquele tipo de pessoa a quem se ama ou se odeia; não tinha meio termo com ele. Opinioso, agressivo, agreste, cheio de manias, com um gênio arredio, combativo e espirituoso. Contumava brincar com o nome, dizendo que o verbo conjugado em primeira pessoa que o pai deu pra ele como sua graça, era um tipo de profecia. De fato foi, até certo ponto. Mas da última vez que eu vi Henrico, ele não era mais aquele homem. Estava muito mais velho do que os seus cinquenta e poucos anos, com o rosto abatido e os olhos profundos. “Sabe irmão, eu me lembro do dia em que eu comecei a envelhecer”, me disse ele fitando a cerveja escura com aqueles olhos vazios e mais escuros ainda. “Foi ela. Foi por causa dela”. 

Eu sabia que era ela, eu sabia que era por causa dela. Mas vê-lo admitir foi um susto. Logo ele, que sempre foi tão orgulhoso. Logo ele, cheio de razão. Naquele momento tive certeza: o Henrico não está velho, ele está no final.

“Todo homem tem que morrer”: disso sabemos com certeza. “A velhice é uma ilha cercada de morte”, disse Stephen King em seu “Isônia”, mas existe uma juventude e uma velhice específica das quais os homens são acometidos. O Henrico sempre foi velho, mas agora que ele tinha de ser jovem ele não mais conseguiu.
Nos nossos 20 anos Henrico e eu já éramos desesperados. Absolutamente ávidos por conhecimento, normalmente nos víamos embriagados de filosofia e poesia, de ateísmo inflamado e de teologia vazia, respectivamente. Ele sabia que tinha escolhido o caminho mais fácil, me dizia sempre que era brega ser ateu, mas que ele preferia ser “filósofo popular” a ter que enfrentar as dificuldades de sustentar algum tipo de crença, como eu fazia na época. O caso é que nos nossos 20 anos nós éramos velhos. Já tínhamos descobrido a falta de sentido em todas as coisas e já estávamos cansados e fatigados do “same old, same old”: “nada de novo debaixo do céu”. Achavamo-nos maduros, mas hoje vejo que aquilo também era juventude, tal como Nietzsche previu. Eu acho que consegui guardar o desespero no armário. O Henrico vestia-o como a sua roupa favorita todos os dias. E aí ele conheceu Elisa...

Elisa era uma daquelas garotas fáceis de amar. Esbelta, com rosto simples e riso fácil. Culta, gosto peculiar, mas em nenhum momento soava presunçosa como Henrico sempre soava (fazendo disso seu hobby). Eles se conheceram no meu aniversário. Se casaram dois anos depois ele com 30 e ela com 27 anos. Passaram 15 anos juntos. Ele me disse que nem foram os melhores da vida dele. Há seis anos eles se separaram. Por isso ele foi embora. Por isso ele estava no final. Eles amaram-se, mas a velhice de Henrico não estava necessariamente relacionada ao amor que se foi em vida. Henrico morria, pois acabou-lhe o desejo. Não o desejo sexual, o desejo por Elisa, mas “o desejo”, aquela vontade pela qual levantamos todas as manhãs e tentamos algo, por mais inútil que seja.

Grana não era o problema. Henrico vinha de uma família relativamente abastada e pôde se dar ao luxo de se dedicar a vida intelectual sem precisa retirar dela o seu sustento, necessariamente. Vivia de alguns negócios nos quais se envolveu por indicação da família, ao passo que Elisa estava no seu auge, lecionando e escrevendo literatura infantil. Isso não impediu a separação e nem interferiu nela de forma alguma, a meu ver. Era outra coisa, coisa esta que eu já mencionei, a tal da falta, falta sem busca. Falta aceita e desesperada.
“Foi por causa dela”... Foi. Eu quis responder pra ele na hora. “Mas foi sua. A Elisa, coube viver e se sentir bem. Ela não quis ser arrastada junto com você para o seu marasmo e danação final”. Quis bater na cara dele com essas palavras, mas não fiz. Eu ouvi, como sempre. Não falei, como nunca.

O desespero é uma doença crônica da humanidade, ao passo que a esperança é apenas imaginação. Normalmente nos esquecemos de que a vida está cheia de meios termos, aos quais devemos visitar sempre. Mas qual a cumeada entre o abismo da racionalidade e lucidez que reside em aceitar a vida como algo sem sentido, cruel e injusto, já que todas as experiências (o amor, a amizade, a arte, o conhecimento...) acabaram e acabarão em morte do mesmo jeito, já que quem ama morre, o amigo morre, a arte acaba e é esquecida e o conhecimento é finito e relativo... e o absurdo abismo de esperar, esperar algo mais, algo que você não pode provar que existe e que pode estar para além da vida? Qual o meio termo entre estar desperto e sonhar? Qual o meio termo entre saber e esperar? Por fim, qual o meio termo entre a doença do desespero e a esperança?

O meio termo é o desejo.

Eu deveria ter dito isso ao Henrico. “Deseje, meu amigo. Queira! E isso te conservará jovem e eterno”. Siga o exemplo de Abraão. Eu sei que ele iria me xingar pelo exemplo, mas depois que Kierkegaard me abriu os olhos, eu não tenho mais a quem recorrer senão ao herói da fé: 

“(...) Mas Abraão acreditou e, por isso, se manteve jovem, porque aquele que espera sempre o melhor envelhece na decepção e o que espera sempre o pior mais depressa se desgasta, mas o que crê conserva eterna juventude. Bendita seja, pois essa história. Porque Sara, em avançada idade, foi ainda suficientemente jovem para desejar as alegrias da maternidade, e Abraão, apesar de seus cabelos brancos, foi suficientemente jovem para desejar ser pai. À primeira vista o milagre parece consistir em o sucesso se verificar segundo a sua esperança, mas, no profundo sentido, o prodígio foi Abraão e Sara terem sido bastante jovens para desejar; foi a fé que manteve neles o desejo e, com ele, a juventude.”

Infelizmente, meu amigo, você não acreditava em milagres. Elisa foi Sara, mas você não quis ser Abraão. Ninguém te prometeu um filho na velhice, isso é fato. Você não tinha o que desejar; suas duas filhas nasceram quando vocês ainda eram jovens. Mas é realmente necessária uma promessa divina para que o homem tenha “O Desejo” em sua velhice? Não é a própria vida uma maravilhosa promessa diária?

A última vez que eu vi Henrico até eu mesmo tinha me esquecido disso. Tinha esquecido de querer. De crer. O que aconteceu a segui me lembrou disso.

Henrico morreu numa terça, sozinho e desesperado. Meu amigo morreu e agora existe um buraco no mundo. Peguei meu desespero no guarda-roupa e tornei a vesti-lo como quem vai a uma festa vestido em sua melhor roupa. Orgulhosamente.

 Depois me vi velho. E depois senti vergonha: Sou muito velho pra essa roupa! Acho que hoje vou me vestir de desejo. Hoje, e em todos os outros hojes que me restaram.

Adeus, velho amigo. Fiz minhas pazes com a tristeza. Agora volto a escrever.

Um comentário:

  1. Cara... a gente precisa ter uma prosa sobre esse escrito! Imaginei um filme a cada linha! Cada referência ou influência sua, a forma como conectou e construiu o texto foi tão cativa que nem consigo comentar já a narrativa, só a obra do autor! Que good feelings viu!! Valeu a espera... mas não demore mais tanto assim não!! =)
    Siga assim honey!
    P.S.: Fez as pazes com a tristeza?

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