A última vez que eu vi Henrico foi quando ele têve
aqui na cidade. Tava de passagem só, nem veio pra dormir por aqui. Tava
resolvendo os problemas da mãe; que era recém-falecida e que, aliás, por ser
recém-falecida não tinha problema algum. Tinha sim, deixado uma casa, coisa e
tal... Ele veio pra falar com a irmã, dividir bens eu acho. Ele num vinha à
Bahia havia cinco anos.
Henrico era meu amigo, daqueles que agente encontra uma ou
duas vezes na vida, no máximo três. É possível ter três bons amigos na vida. Eu
mesmo tive quatro: o Henrico, o Fernando, que também já morreu, o Soares e...
Não, eu só tive três. Mas o Henrico era especial, a gente nunca perdeu o
contato. Mentira. A gente perdeu o contato.
O Henrico era aquele tipo de pessoa a quem se ama ou se
odeia; não tinha meio termo com ele. Opinioso, agressivo, agreste, cheio de
manias, com um gênio arredio, combativo e espirituoso. Contumava brincar com o
nome, dizendo que o verbo conjugado em primeira pessoa que o pai deu pra ele
como sua graça, era um tipo de profecia. De fato foi, até certo ponto. Mas da
última vez que eu vi Henrico, ele não era mais aquele homem. Estava muito mais
velho do que os seus cinquenta e poucos anos, com o rosto abatido e os olhos
profundos. “Sabe irmão, eu me lembro do dia em que eu comecei a envelhecer”, me
disse ele fitando a cerveja escura com aqueles olhos vazios e mais escuros
ainda. “Foi ela. Foi por causa dela”.
Eu sabia que era ela, eu sabia que era por causa dela. Mas
vê-lo admitir foi um susto. Logo ele, que sempre foi tão orgulhoso. Logo ele,
cheio de razão. Naquele momento tive certeza: o Henrico não está velho, ele
está no final.
“Todo homem tem que morrer”: disso sabemos com certeza. “A
velhice é uma ilha cercada de morte”, disse Stephen King em seu “Isônia”, mas
existe uma juventude e uma velhice específica das quais os homens são
acometidos. O Henrico sempre foi velho, mas agora que ele tinha de ser jovem
ele não mais conseguiu.
Nos nossos 20 anos Henrico e eu já éramos desesperados.
Absolutamente ávidos por conhecimento, normalmente nos víamos embriagados de
filosofia e poesia, de ateísmo inflamado e de teologia vazia, respectivamente.
Ele sabia que tinha escolhido o caminho mais fácil, me dizia sempre que era
brega ser ateu, mas que ele preferia ser “filósofo popular” a ter que enfrentar
as dificuldades de sustentar algum tipo de crença, como eu fazia na época. O
caso é que nos nossos 20 anos nós éramos velhos. Já tínhamos descobrido a falta
de sentido em todas as coisas e já estávamos cansados e fatigados do “same old,
same old”: “nada de novo debaixo do céu”. Achavamo-nos maduros, mas hoje vejo
que aquilo também era juventude, tal como Nietzsche previu. Eu acho que
consegui guardar o desespero no armário. O Henrico vestia-o como a sua roupa
favorita todos os dias. E aí ele conheceu Elisa...
Elisa era uma daquelas garotas fáceis de amar. Esbelta, com
rosto simples e riso fácil. Culta, gosto peculiar, mas em nenhum momento soava
presunçosa como Henrico sempre soava (fazendo disso seu hobby). Eles se
conheceram no meu aniversário. Se casaram dois anos depois ele com 30 e ela com
27 anos. Passaram 15 anos juntos. Ele me disse que nem foram os melhores da
vida dele. Há seis anos eles se separaram. Por isso ele foi embora. Por isso
ele estava no final. Eles amaram-se, mas a velhice de Henrico não estava
necessariamente relacionada ao amor que se foi em vida. Henrico morria, pois
acabou-lhe o desejo. Não o desejo sexual, o desejo por Elisa, mas “o desejo”, aquela
vontade pela qual levantamos todas as manhãs e tentamos algo, por mais inútil que
seja.
Grana não era o problema. Henrico vinha de uma família
relativamente abastada e pôde se dar ao luxo de se dedicar a vida intelectual
sem precisa retirar dela o seu sustento, necessariamente. Vivia de alguns
negócios nos quais se envolveu por indicação da família, ao passo que Elisa
estava no seu auge, lecionando e escrevendo literatura infantil. Isso não
impediu a separação e nem interferiu nela de forma alguma, a meu ver. Era outra
coisa, coisa esta que eu já mencionei, a tal da falta, falta sem busca. Falta
aceita e desesperada.
“Foi por causa dela”... Foi. Eu quis responder pra ele na
hora. “Mas foi sua. A Elisa, coube viver e se sentir bem. Ela não quis ser arrastada
junto com você para o seu marasmo e danação final”. Quis bater na cara dele com
essas palavras, mas não fiz. Eu ouvi, como sempre. Não falei, como nunca.
O desespero é uma doença crônica da humanidade, ao passo que
a esperança é apenas imaginação. Normalmente nos esquecemos de que a vida está
cheia de meios termos, aos quais devemos visitar sempre. Mas qual a cumeada
entre o abismo da racionalidade e lucidez que reside em aceitar a vida como
algo sem sentido, cruel e injusto, já que todas as experiências (o amor, a
amizade, a arte, o conhecimento...) acabaram e acabarão em morte do mesmo
jeito, já que quem ama morre, o amigo morre, a arte acaba e é esquecida e o
conhecimento é finito e relativo... e o absurdo abismo de esperar, esperar algo
mais, algo que você não pode provar que existe e que pode estar para além da
vida? Qual o meio termo entre estar desperto e sonhar? Qual o meio termo entre
saber e esperar? Por fim, qual o meio termo entre a doença do desespero e a
esperança?
O meio termo é o desejo.
Eu deveria ter dito isso ao Henrico. “Deseje, meu amigo.
Queira! E isso te conservará jovem e eterno”. Siga o exemplo de Abraão. Eu sei
que ele iria me xingar pelo exemplo, mas depois que Kierkegaard me abriu os
olhos, eu não tenho mais a quem recorrer senão ao herói da fé:
“(...) Mas Abraão acreditou e, por isso, se manteve jovem,
porque aquele que espera sempre o melhor envelhece na decepção e o que espera
sempre o pior mais depressa se desgasta, mas o que crê conserva eterna
juventude. Bendita seja, pois essa história. Porque Sara, em avançada idade,
foi ainda suficientemente jovem para desejar as alegrias da maternidade, e
Abraão, apesar de seus cabelos brancos, foi suficientemente jovem para desejar
ser pai. À primeira vista o milagre parece consistir em o sucesso se verificar
segundo a sua esperança, mas, no profundo sentido, o prodígio foi Abraão e Sara
terem sido bastante jovens para desejar; foi a fé que manteve neles o desejo e,
com ele, a juventude.”
Infelizmente, meu amigo, você não acreditava em milagres.
Elisa foi Sara, mas você não quis ser Abraão. Ninguém te prometeu um filho na
velhice, isso é fato. Você não tinha o que desejar; suas duas filhas nasceram
quando vocês ainda eram jovens. Mas é realmente necessária uma promessa divina
para que o homem tenha “O Desejo” em sua velhice? Não é a própria vida uma
maravilhosa promessa diária?
A última vez que eu vi Henrico até eu mesmo tinha me
esquecido disso. Tinha esquecido de querer. De crer. O que aconteceu a segui me
lembrou disso.
Henrico morreu numa terça, sozinho e desesperado. Meu amigo
morreu e agora existe um buraco no mundo. Peguei meu desespero no guarda-roupa
e tornei a vesti-lo como quem vai a uma festa vestido em sua melhor roupa.
Orgulhosamente.
Depois me vi velho. E
depois senti vergonha: Sou muito velho pra essa roupa! Acho que hoje vou me
vestir de desejo. Hoje, e em todos os outros hojes que me restaram.
Adeus, velho amigo. Fiz minhas pazes com a tristeza. Agora
volto a escrever.