segunda-feira, 12 de novembro de 2012

A Última Vez Que Eu Vi Henrico



A última vez que eu vi Henrico foi quando ele têve aqui na cidade. Tava de passagem só, nem veio pra dormir por aqui. Tava resolvendo os problemas da mãe; que era recém-falecida e que, aliás, por ser recém-falecida não tinha problema algum. Tinha sim, deixado uma casa, coisa e tal... Ele veio pra falar com a irmã, dividir bens eu acho. Ele num vinha à Bahia havia cinco anos.

Henrico era meu amigo, daqueles que agente encontra uma ou duas vezes na vida, no máximo três. É possível ter três bons amigos na vida. Eu mesmo tive quatro: o Henrico, o Fernando, que também já morreu, o Soares e... Não, eu só tive três. Mas o Henrico era especial, a gente nunca perdeu o contato. Mentira. A gente perdeu o contato.

O Henrico era aquele tipo de pessoa a quem se ama ou se odeia; não tinha meio termo com ele. Opinioso, agressivo, agreste, cheio de manias, com um gênio arredio, combativo e espirituoso. Contumava brincar com o nome, dizendo que o verbo conjugado em primeira pessoa que o pai deu pra ele como sua graça, era um tipo de profecia. De fato foi, até certo ponto. Mas da última vez que eu vi Henrico, ele não era mais aquele homem. Estava muito mais velho do que os seus cinquenta e poucos anos, com o rosto abatido e os olhos profundos. “Sabe irmão, eu me lembro do dia em que eu comecei a envelhecer”, me disse ele fitando a cerveja escura com aqueles olhos vazios e mais escuros ainda. “Foi ela. Foi por causa dela”. 

Eu sabia que era ela, eu sabia que era por causa dela. Mas vê-lo admitir foi um susto. Logo ele, que sempre foi tão orgulhoso. Logo ele, cheio de razão. Naquele momento tive certeza: o Henrico não está velho, ele está no final.

“Todo homem tem que morrer”: disso sabemos com certeza. “A velhice é uma ilha cercada de morte”, disse Stephen King em seu “Isônia”, mas existe uma juventude e uma velhice específica das quais os homens são acometidos. O Henrico sempre foi velho, mas agora que ele tinha de ser jovem ele não mais conseguiu.
Nos nossos 20 anos Henrico e eu já éramos desesperados. Absolutamente ávidos por conhecimento, normalmente nos víamos embriagados de filosofia e poesia, de ateísmo inflamado e de teologia vazia, respectivamente. Ele sabia que tinha escolhido o caminho mais fácil, me dizia sempre que era brega ser ateu, mas que ele preferia ser “filósofo popular” a ter que enfrentar as dificuldades de sustentar algum tipo de crença, como eu fazia na época. O caso é que nos nossos 20 anos nós éramos velhos. Já tínhamos descobrido a falta de sentido em todas as coisas e já estávamos cansados e fatigados do “same old, same old”: “nada de novo debaixo do céu”. Achavamo-nos maduros, mas hoje vejo que aquilo também era juventude, tal como Nietzsche previu. Eu acho que consegui guardar o desespero no armário. O Henrico vestia-o como a sua roupa favorita todos os dias. E aí ele conheceu Elisa...

Elisa era uma daquelas garotas fáceis de amar. Esbelta, com rosto simples e riso fácil. Culta, gosto peculiar, mas em nenhum momento soava presunçosa como Henrico sempre soava (fazendo disso seu hobby). Eles se conheceram no meu aniversário. Se casaram dois anos depois ele com 30 e ela com 27 anos. Passaram 15 anos juntos. Ele me disse que nem foram os melhores da vida dele. Há seis anos eles se separaram. Por isso ele foi embora. Por isso ele estava no final. Eles amaram-se, mas a velhice de Henrico não estava necessariamente relacionada ao amor que se foi em vida. Henrico morria, pois acabou-lhe o desejo. Não o desejo sexual, o desejo por Elisa, mas “o desejo”, aquela vontade pela qual levantamos todas as manhãs e tentamos algo, por mais inútil que seja.

Grana não era o problema. Henrico vinha de uma família relativamente abastada e pôde se dar ao luxo de se dedicar a vida intelectual sem precisa retirar dela o seu sustento, necessariamente. Vivia de alguns negócios nos quais se envolveu por indicação da família, ao passo que Elisa estava no seu auge, lecionando e escrevendo literatura infantil. Isso não impediu a separação e nem interferiu nela de forma alguma, a meu ver. Era outra coisa, coisa esta que eu já mencionei, a tal da falta, falta sem busca. Falta aceita e desesperada.
“Foi por causa dela”... Foi. Eu quis responder pra ele na hora. “Mas foi sua. A Elisa, coube viver e se sentir bem. Ela não quis ser arrastada junto com você para o seu marasmo e danação final”. Quis bater na cara dele com essas palavras, mas não fiz. Eu ouvi, como sempre. Não falei, como nunca.

O desespero é uma doença crônica da humanidade, ao passo que a esperança é apenas imaginação. Normalmente nos esquecemos de que a vida está cheia de meios termos, aos quais devemos visitar sempre. Mas qual a cumeada entre o abismo da racionalidade e lucidez que reside em aceitar a vida como algo sem sentido, cruel e injusto, já que todas as experiências (o amor, a amizade, a arte, o conhecimento...) acabaram e acabarão em morte do mesmo jeito, já que quem ama morre, o amigo morre, a arte acaba e é esquecida e o conhecimento é finito e relativo... e o absurdo abismo de esperar, esperar algo mais, algo que você não pode provar que existe e que pode estar para além da vida? Qual o meio termo entre estar desperto e sonhar? Qual o meio termo entre saber e esperar? Por fim, qual o meio termo entre a doença do desespero e a esperança?

O meio termo é o desejo.

Eu deveria ter dito isso ao Henrico. “Deseje, meu amigo. Queira! E isso te conservará jovem e eterno”. Siga o exemplo de Abraão. Eu sei que ele iria me xingar pelo exemplo, mas depois que Kierkegaard me abriu os olhos, eu não tenho mais a quem recorrer senão ao herói da fé: 

“(...) Mas Abraão acreditou e, por isso, se manteve jovem, porque aquele que espera sempre o melhor envelhece na decepção e o que espera sempre o pior mais depressa se desgasta, mas o que crê conserva eterna juventude. Bendita seja, pois essa história. Porque Sara, em avançada idade, foi ainda suficientemente jovem para desejar as alegrias da maternidade, e Abraão, apesar de seus cabelos brancos, foi suficientemente jovem para desejar ser pai. À primeira vista o milagre parece consistir em o sucesso se verificar segundo a sua esperança, mas, no profundo sentido, o prodígio foi Abraão e Sara terem sido bastante jovens para desejar; foi a fé que manteve neles o desejo e, com ele, a juventude.”

Infelizmente, meu amigo, você não acreditava em milagres. Elisa foi Sara, mas você não quis ser Abraão. Ninguém te prometeu um filho na velhice, isso é fato. Você não tinha o que desejar; suas duas filhas nasceram quando vocês ainda eram jovens. Mas é realmente necessária uma promessa divina para que o homem tenha “O Desejo” em sua velhice? Não é a própria vida uma maravilhosa promessa diária?

A última vez que eu vi Henrico até eu mesmo tinha me esquecido disso. Tinha esquecido de querer. De crer. O que aconteceu a segui me lembrou disso.

Henrico morreu numa terça, sozinho e desesperado. Meu amigo morreu e agora existe um buraco no mundo. Peguei meu desespero no guarda-roupa e tornei a vesti-lo como quem vai a uma festa vestido em sua melhor roupa. Orgulhosamente.

 Depois me vi velho. E depois senti vergonha: Sou muito velho pra essa roupa! Acho que hoje vou me vestir de desejo. Hoje, e em todos os outros hojes que me restaram.

Adeus, velho amigo. Fiz minhas pazes com a tristeza. Agora volto a escrever.

terça-feira, 1 de maio de 2012

A Vingança do Elefante



“O espírito é memória, e talvez seja apenas isso. Pensar é lembrar-se de seus pensamentos; querer é lembrar-se do que se quer. Não é, por certo, que só se possa pensar o mesmo ou querer o que já se quis”.
“ (...) Epicuro fez disso uma sabedoria: na tempestade do tempo, o porto profundo da memória... Mas o esquecimento é um porto mais seguro. Se os neuróticos sofrem de reminiscência, como dizia Freud, a sanidade psíquica bem que deve, em alguma coisa, alimentar-se de esquecimento”. (André Comte-Sponville)
“Fui eu quem o fiz”, diz a minha memória. “Não posso ter feito isso” diz o meu orgulho e mantém-se irredutível. No final, é a memória que cede.  (Nietzsche)
                                                                                                                          
O filme francês O Quarto Verde (1978), conta a história de Gérard Mazetum, um homem cuja esposa acabara de falecer. Tomado por saudade e por algum tipo fidelidade, Gérard constrói um “altar” em memória de sua falecida esposa. A trama se desenvolve em torno desse amor do personagem pelos mortos, já que ele trabalha na seção de anúncios fúnebres de um jornal e passa a respeitar profundamente a lembrança dos que já se foram. Ele se recusa a esquecer “em um mundo onde todos se esquecem”. Assim, Gérard passa a viver numa espécie de apego pelo que se perdeu, contra o que se tem. Um apego ao apego e uma constante memória da memória que o impede de seguir sua vida, se relacionar plenamente com as pessoas que o cercam e encontrar o amor.

“Deus preserve o homem de esquecer de esquecer”!
...

A sociedade brasileira é constantemente criticada pela sua falta de memória, principalmente no que diz respeito à reeleição de determinados candidatos, ou na falta de respeito por alguns símbolos da pátria e da cultura. Esse tipo de memória, motivo da existência de estátuas, obeliscos e feriados, em certo sentido, é a memória que se deve cultivar. Como forma de respeito histórico? Sim. Como uma forma de educação? Certamente. Existem diferentes tipos de memórias e elas podem servir para coisas diferentes? Não sei. Por isso eu escrevo.

Penso que a memória seja uma só e existem coisas das quais nunca devemos esquecer e ainda lutar para que elas sejam lembradas por todos. Contudo, existem coisas das quais devemos cuidar com a maior e mais sincera forma de desapego. E essas são, na maioria das vezes, as nossas próprias coisas. Nossas malas e gavetas... nossos baús.

Quanta coisa guardada! Quanto apego. A ideia de Gérard por mais nobre que fosse, o paralisou e o privou de querer, de ir e de ser. Sua existência de certo modo foi atada pelo respeito e pela fidelidade profunda a respeito do que foi. É nesse momento que nos vem a MEMÓRIA que o equilíbrio é a base que sustenta o bem viver, pois assim como não se pode viver só do passado e querer sempre o que se quis, não podemos fingir que não vivemos e nem esquecer de que se quis, e por vezes, do que se quis. Esse tipo de memória desprovida de orgulho e de apego desmedido é uma excelente forma de fidelidade (ver texto Desfrutando Eternidade, 2010).

Alimentar-se de esquecimento e de lembranças. Gastar toda energia possível ao equilibrar-se entre os dois alimentos, rezando para esquecer-se do que se deve, sem deixar nada importante para trás. 

Eu escrevi algo parecido há pouco mais de um ano atrás. Algo com a mesma temática e baseada no mesmo texto. Acho que eu tenho que me lembrar de esquecer e praticar esse esquecimento. Por isso escrevo: pelo paradoxo; Para ser um elefante que só quer se lembrar de esquecer, em alguns casos. Por saber que eu não sou assim. Por saber que eu vou lembrar. Assim, eu sigo as palavras do Pregador: “sobretudo o que se deve guardar, guarda o teu coração ...”. Por saber que guardo muitas outras coisas, vou tentar com afinco guarda-lo melhor.

domingo, 15 de abril de 2012

Um bom motivo

É sobre motivos e sentidos. Tudo que se constrói em se tratando de vidas humanas, se constitui a partir da junção de motivos ou motivações que levam determinado indivíduo a praticar tais e tais atos. De acordo com o sentido dos acontecimentos e do sentido prévio que motivou tais ações, o conjunto dessas ações praticadas, mais precisamente o resultado da prática dessas ações, determinarão a sorte dessa pessoa. Faço-me mais claro: O que eu sou hoje é o resultado de escolhas e caminhos, de resoluções e atitudes, por vezes planejadas, por vezes não, mas que fatalmente me encerram como o que sou, ou pelo menos, como o que estou sendo: “result c’est moi”! Tais acontecimentos, que dependem diretamente da minha interferência, estão associados como o sentido para o qual eu pretendo direcionar a minha vida. E em uma expressão corriqueira, mas que vem a calhar com esse discurso, nós nos deparamos de certa forma com um “sentido para a vida”. Tomar algo que não tem sentido (a vida em si), e dar-lhe um sentido.

Da mesma forma, nos deparamos com os sistemas de sentidos. O Pondé disse que “religiões são sistemas de sentido. A vida, aparentemente sem muito sentido, precisa de tais sistemas. A profissão pode ser um. A dedicação aos filhos, outro”. Assim tentamos “encaminhar” nossas vidas por determinada via, procurando pela tal da felicidade. E “ser feliz pra que mesmo?”. Não interessa mais.

...

Já falei rapidamente disso que seria “um sentido”, como motivador das ações que tomamos na tentativa de continuar seguindo “tal sentido”, seja lá qual for. Eu quero falar agora do que seria “o motivo”, ou o meu motivo.

O meu motivo foge daquilo que costuma ser entendido por motivação. O meu motivo é subjetivo, ele parte de um conceito abstrato e é um motivo que não serve pra nada!
Eu quero comparar esse(s) motivo(s) que eu procuro não como um sentido, algo abrangente e conceitual, que tomaria toda a minha existência a fim de mantê-lo. O motivo que eu busco é o motivo da música.

Em música, é chamado de motivo uma sequencia, um fragmento recorrente ou um padrão que se repete. Essa sequencia ou esse padrão pode ser utilizado pra construir a música inteira. Esse fragmento pode ser pequeno, mas ainda assim a música se baseará nesse detalhe. Por exemplo, a quinta de Beethoven onde “o padrão de três notas curtas seguidas por uma longa é repetido ao longo de todo o primeiro movimento”: tan-tan-tan- taaaaaaaan! Como Eleanor Rigby dos Beatles com a cadência se repetindo em dois tempos ao longo da música. É mais ou menos isso. Eu não entendo de música. Mas eu sei que eu quero um motivo assim, e sei que eu quero viver por esse motivo; viver por música. Não pra ser feliz, só pra ter um bom motivo pra continuar vivendo...

Carlo Drumond Andrade disse que “ser feliz sem motivo é a mais autêntica forma de felicidade”. Eu blasfemaria as palavras dele dizendo que ter motivo sem precisar ser feliz é uma ótima forma de alegria! E o que é a alegria senão bons momentos em nossa existência? Fragmentos de sossego e contentamento (e porque não dizer de felicidade) nesse mar de desconforto e solidão? A alegria pode ser de qualquer tamanho e nós esperamos que ela se repita, tal qual o motivo! As palavras de Spinoza que estão no cabeçalho desse blog agora fazem muito sentido: “Esforça-te por agir bem e manter-se alegre”. Esforça-te por encontrar bons motivos; viva por música!

No livro “A insustentável leveza do ser”, os personagens se deparam por vezes com o encontro com esse “motivo”. O autor Milan Kundera era, notadamente, músico. Ele soube criar seus personagens por música e soube escrever um excelente romance com um bom motivo e como um bom motivo. Assim temos um exemplo de obra baseada no que se quer na vida. Obra dele e minha vida, é claro. Apenas no que tange a construção do romance (as ideologias presentes pertencem a outra história, que não é para agora).

Vida minha em busca de motivos. Minha vida, meus motivos. Quero estar atento a eles. Quero reconhecê-los e desfrutá-los. E assim o sentido de minha existência se tornaria achar esse motivos? De forma nenhuma. Tal existência só cansaria qualquer existente.

Os motivos surgirão, mas no fim das contas se é só. Você poderá até prolongar os motivos, mas não eternizá-los. No final das contas se é só nessa curta vida. Sendo assim, guarde seus motivos para os momentos da solidão. Aquele riso, aquela conversa... aquela idéia. Todos os pequenos motivos que se agregam ao longo da experiência vida. Pode até ser que se encontre um motivo tão bom que se queira só ele. Sempre ele. Prefiro não ter tal esperança. Seria mera imaginação. Ainda assim, não se peca por querer tal coisa.

Por fim, deixo este texto confuso com as palavras do escritor sueco Dag Hammarskjold:

“Não sei Quem – ou o Que – formulou a questão. Não sei quando foi formulada. Nem me lembro se a respondi. Mas em algum momento eu disse “Sim” a Alguém – ou a Alguma Coisa - , e a partir desse momento tive certeza de que a existência tem sentido e que, por isso, minha vida, em entrega pessoal tinha um objetivo”.

Qual sentido da vida? Taí uma pergunta tão maravilhosa que não merece ser trocada por uma resposta (resumindo a história do rabino contada por Yancey). Me dê motivos; Não sei se terei certeza ou seguirei algum sentido, mas eu adoraria dizer “Sim”.

segunda-feira, 5 de março de 2012

Puto, em Pessoa

Álvaro de Campos

Lisbon Revisited
(l923)

NÃO: Não quero nada.
Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!

Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) —
Das ciências, das artes, da civilização moderna!

Que mal fiz eu aos deuses todos?

Se têm a verdade, guardem-na!

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

Não me macem, por amor de Deus!

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?

Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!

Ó céu azul — o mesmo da minha infância —
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflete!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Sobre as edições humanas, filmes e arremedos de amor


Como muitos dos posts desse blog, esse eu escrevi há um tempo (alguns meses) e deixei guardado pra postar depois. Eu os deixo guardado como plano B quando surgirem as eventuais crises de criatividade. Acho que não é o caso, mas eu tenho que terminar uma missão literária antes de postar outra coisa!

Sem mais, ei-lo:

Ausência e Compreensão ou O Amor é Filme

Ame-o ou deixe-o”!

E quando amar é deixar? E quando se ama e deixa? A ausência, fruto do que não mais é nos ajuda um pouco com essas questões.

Tem aquele tipo de filme que ao terminar nos deixa parados, olhando para a tela, sem saber direito o que aconteceu ali. 5, 10, 15 segundos depois, a gente começa a perceber e a juntar os fatos, as cenas, os diálogos, e aí rola aquele aceno positivo com a cabeça que diz: “Puta que pariu! Esse é o filme”, ou aquele aceno negativo que diz: “Puta que pariu! Quero minhas duas horas de volta”. Assim, bem assim, acontece em nossas vidas. São basicamente essas as nossas reações depois que as coisas acabam, sejam elas quais forem, terminem elas como terminarem. O problema é que aqueles segundos até a compreensão do filme depois do seu final, quando transformados em tempo de compreensão do que aconteceu conosco em relação as nossas experiências “acabadas”, podem ser contados como dias, meses, anos... vidas.

Muitas vidas. As vezes nem parece a mesma vida. Vidas passadas, sei lá. Quem nunca pensou: “Se eu vivesse “tal época” da minha vida com “a cabeça” que eu tenho hoje eu faria um monte de coisa diferentemente”. Mas é essa a grande questão: Você só sabe o que faria porque você não vive mais aquilo. Você já viveu. A memória que você tem daquele tempo só revela a ausência daquele tempo. Você, hoje, é uma outra edição de si mesmo, relembrando Machado de Assis. Assim, de certa forma, tem que se haver a perda ou a ausência, para que haja uma compreensão do que aconteceu. E o tempo, brother, é severo e sempre nos deixará com essa impressão de que poderíamos ter feito diferentemente, de que poderíamos ter feito mais e melhor. Desse jeito, o melhor que podemos fazer, é nos apegar ao “porto seguro da memória”, aos resquícios do que vivemos, para que possamos retê-los e, ao mesmo tempo, deixá-los ir.

Deixar ir para compreender depois: isso não faz o menor sentido para os amantes. E nem poderia fazer. Quem ama não quer saber disso, quem ama só quer saber do... não quer saber de nada. E isso é bom. Sem mas*, só bom e simples. Digo até, prático. Mesmo assim, se morrer o que é sentido pelos amantes, “posto que é chama”, depois da contemplação da tela no momento em que os créditos sobem e no final de um tempo particular e de algumas lágrimas praticadas, brotará no espírito daqueles que a desejarem, a compreensão do que aconteceu. A calma compreensão do que aconteceu. E aí o que acontece? Deixo ir, mesmo amando. Deixo ir, pois agora compreendo ou deixei ir e agora compreendo (a segunda afirmativa deve se aproximar mais da verdade).

Eu não ia tornar o “amor romance” no cerne desse texto, mas não conseguir fazer diferente, por que

O amor é filme
Eu sei pelo cheiro de menta e pipoca que dá quando a gente ama
Eu sei por que eu sei muito bem como a cor da manhã fica
Da felicidade, da dúvida, dor de barriga
É drama, aventura, mentira, comédia romântica

Um belo dia a gente acorda e hum...
Um filme passou por a gente e parece que já se anunciou o episódio dois
É quando a gente sente o amor se abuletar na gente tudo acabou bem,
Agora o que vem depois

O amor é filme...

É quando as emoções viram luz, e sombras e sons, movimentos
E o mundo todo vira nós dois,
Dois corações bandidos
Enquanto uma canção de amor persegue o sentimento
O Zoom in dá ré e sobem os créditos
O amor é filme e Deus espectador!

"- A gente devia ser como o pessoal do filme, poder cortar as partes chatas da vida, poder evitar os acontecimentos!
Num é?!?!

...

Num é???
Caso o filme acabe, deixe, entenda, levante e vai jogar o saco da pipoca no lixo... se puder.

*É agora que confesso minha mentira: existe um “mas”, a saber, MAS quem ama? Quem sabe amar? Esse é o obstáculo posto entre o “amor” e a compreensão, que jamais seria realmente obstáculo para o amor (sem aspas), já que este dispensa a compreensão do que aconteceu, pois ele permanece, pois ele prevalece e nunca poderá ter acontecido, pois sempre acontece. Ainda assim, não restam dúvidas de que os humanos não são capazes de tal amor sem aspas. Somos capazes sim de “amores”, ou amor + mas.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Into the wild



"Os únicos presentes do mar são golpes duros ... e às vezes a chance de sentir-se forte. Eu não sei muito sobre o mar, mas sei que as coisas são assim por aqui. E também sei como é importante na vida não necessariamente ser forte, mas sentir-se forte, confrontar-se ao menos uma vez, achar-se ao menos uma vez na mais antiga condição humana. Enfrentar a pedra surda e cega a sós, sem ajuda além das próprias mãos e da cabeça."

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Sobre as casas que nos habitam

Eu tenho uma casa, bem na ladeira dos já fatigados
Uma casa bem grande e até que bonita, se vista de fora
Uma casa tão velha que é da idade das dores dos homens
Quem já morou nela se fez tão ingrato, mudou-se pra longe

Essa casa é feita de muros cerrados, tão altos, tão altos
Que é pra manter, distante, distante, qualquer um que seja
O portão que tem nela, deixei eu trancado já faz muito tempo
E a chave deste, trago eu oculta à minha maneira

Nessa casa que é minha, existe um jardim que é minha infância
Onde eu brincava e era feliz ingênuo de tudo
Passando por ele encontra-se a porta que dá para sala
Um vão deprimente sem qualquer mobília, sem nada, sem nada

Num canto, recôndito, o meu frio quarto que é onde me deito
Travo as mais vis batalhas contra o inimigo, o meu travesseiro
Por vezes acordo, não sei se é noite não sei se é dia
Por vezes me deito a me questionar o porquê da agonia

Há ainda um banheiro onde me lavo dos muitos pecados
Queria somá-los, mas até para isso me fiz fracassado
Dei voltas na casa e não encontrei sequer uma janela
Ninguém me perscruta e se há pecados arrasto-os nas sombras

Minha casa é isso, é tudo que tenho e tudo que posso
Não sei se sou casa ou se sempre vontade, sempre despedida
O retrato da casa é quase bonito, é quase canção
O relato da casa é o retrato vazio do meu coração