quinta-feira, 26 de maio de 2011

A César o de César, a Deus o de Deus (distinções à parte)

Trecho extraído do tratado sobre “Desobediência Civil” de Henry David Thoreau (1817 – 1862), obra publicada em 1848 que influenciou inúmeros pensadores do século XIX e XX (além de continuar suscitando reflexões significativas, é claro).
Em sua crítica ao governo e à forma de organização do Estado onde vivia, o autor sugere o enfretamento a estes utilizando as armas disponíveis ao cidadão comum, como o não pagamento dos impostos, que seria o atestado final de desaprovação à “ordem” social vigente. No fragmento abaixo, Thoreau apresenta uma das possibilidades que fariam valer o seu discurso de desobediência civil e afirmação da liberdade individual: o “desapego” ao dinheiro, por assim dizer.

“(...) Se houvesse quem vivesse inteiramente sem usar o dinheiro, o próprio Estado hesitaria em exigir que ele lhe entregasse uma quantia. O homem rico, no entanto - e não pretendo estabelecer uma comparação invejosa -, é sempre um ser vendido à instituição que o enriquece. Falando em termos absolutos, quanto mais dinheiro, menos virtude; pois o dinheiro interpõe-se entre um homem e os seus objetivos e permite que ele os compre; obter alguma coisa dessa forma não é uma grande virtude. O dinheiro acalma muitas perguntas que de outra forma ele se veria pressionado a fazer; de outro lado, a única pergunta nova que o dinheiro suscita é difícil, embora supérflua: "Como gastá-lo?”Um homem assim fica, portanto, sem base para uma moralidade. As oportunidades de viver diminuem proporcionalmente ao acúmulo daquilo que se chama de "meios". A melhor coisa a ser feita em prol da cultura do seu tempo por um homem rico é realizar os planos que tinha quando ainda era pobre. Cristo respondeu aos seguidores de Herodes de acordo com a situação deles. "Mostrem-me o dinheiro dos tributos", disse ele; e um deles tirou do bolso uma moeda. Disse então Jesus Cristo: "Se vocês usam o dinheiro com a imagem de César, dinheiro que ele colocou em circulação e ao qual ele deu valor, ou seja, se vocês são homens do Estado e estão felizes de se aproveitar das vantagens do governo de César, então paguem-no por isso quando ele o exigir. Portanto, dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus"; Cristo não lhes disse nada sobre como distinguir um do outro; eles não queriam saber isso”.

Texto na íntegra dísponivel em PDF: Clique aqui
Ver também, Evangelho de São Marcos 12,13-17.

Eu voltei para Maio de 1937

Vejo meus pais parados no baile de formatura da faculdade.

Vejo meu pai vagando sob o arco de granito ocre …

As telhas vermelhas luzindo feito placas de sangue atrás de sua cabeça.

Vejo minha mãe abraçando alguns livros leves, parada ao pé do pilar de tijolinhos …

Com os portões de ferro batido ainda abertos atrás dela, com suas lanças negras no ar de maio.

Eles vão se formar.

Eles vão se casar. São crianças, são tolos.

Só sabem que são inocentes, que nunca machucariam ninguém.

Quero ir até eles e dizer:

- “Parem, não façam isso.
Ela é a mulher errada, ele é o homem errado.
Vocês farão coisas que nunca imaginariam fazer.
Farão coisas ruins com seus filhos.
Vão sofrer de modos que nunca ouviram falar.
Vão querer morrer.”

Quero ir até eles sob o sol de fim de maio e dizer isto.

Mas eu não vou. Quero viver.

Pego os dois como bonecos de papel de homem e mulher e os esfrego pelo quadril feito lascas de pederneira para tirar faíscas deles.

Eu digo:

- Façam o que têm de fazer, e eu lhes direi tudo.



"I got back to 1937 May", by Sharon Olds,The Gold Cell (Knopf, 1987).

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Desfiles e misérias no final de abril*

Marcos Aurélio dos Santos Souza**

Do Palácio de Buckinghan à Abadia de Westminster, só riqueza e suntuosidade, do Campo Grande à Praça Castro Alves, só pobreza e miséria. Desfiles em mundos praticamente opostos repetem a nossa imensa realidade humana, paradoxal e triste, através de um figurino bem representativo. Lá, os chapéus, cabelos loiros ao vento, tiaras coloridas e os fabulosos bearskins da guarda real inglesa. Aqui, os cabelos crespos, guardas chuvas quebrados, que mal evitam a chuva insistente, mãos e bolsas nas cabeças para não estragar a “escova” e o “permanente”, boinas surradas e imundas da polícia militar, fingindo paciência com o trânsito caótico da Sete de Setembro e com as bolas vermelhas de palhaços, escondendo os narizes dos manifestantes.
Pela televisão e pelas ruas largas de Londres, 2 bilhões de pessoas acompanham ao casamento real britânico, como diz uma serelepe repórter da Globo; no comércio soteropolitano algumas dezenas de comerciários cansados e transeuntes se empurram em calçadas estreitas, desviando o olhar da passeata que mendiga atenção, repetindo, com indisfarçável cansaço, o jargão enfadonho do proletariado da educação. No alto, nas coberturas e nos imensos apartamentos do Campo Grande e Corredor da Vitória, a elite baiana não se importa com os bonecos gigantes e as placas em vermelho de Greve das universidades estaduais, e acompanha, em televisão de plasma, as notícias sobre a grande encenação real, o carnaval inglês, imaginando perfumes, os pradas, guccis, armanis, desfilando na passarela do mundo europeu (vontade de estar lá). O governador baiano, identificado com o primeiro mundo, na sua cobertura, versão baiana de palácio real, no alto de Ondina, desliga celular e telefone, para acompanhar “seus semelhantes” europeus - não saber de greve, vontade de ser príncipe, sentimento difuso de rei tropical, entre o pensamento de lord político á la Joaquim Nabuco e a filosofia de Maquiavel.
Lá em baixo, o mundo é diferente. O vermelho, um vermelho quase vinho, cardial, que em Buckinghan adorna os corpos do soldado e do príncipe William, acúmulo de sangue coagulado das chacinas bretãs, pinta a Avenida Sete na manifestação dos professores. Nessa chuva que cai hoje e derrete os morros, jogando barro em cima das pessoas das Cajazeiras e dos morros na capital baiana, o vermelho mais importante para o governador é o vermelho da cruz, que adorna a bandeira do Reino Unido.
O governador prefere viver nos sonhos do palácio de Ondina, na pompa inglesa, que parece antiga e tradicional, mas, como bem lembra os historiadores Hobsbawn e Ranger, foi forjada recentemente como símbolo de poder, inquestionável e cruel. Ele prefere viver na sua própria invenção de estado, cortando salários, impedindo as Universidades crescerem e os professores se aperfeiçoarem, dedicando seu tempo integral por um salário de miséria. Prefere viver no castelo de Caras da elite baiana, ideologicamente branca de olhos azuis, como a elite britânica.
Chove e inunda em todos nós uma sensação de que o mundo parou no século XVI. A elite política baiana imita a Europa, políticos brasileiros imitam nobres ingleses, como as mulheres brasileiras imitavam os chapéus das colonizadoras portuguesas no século XVI, os quais, distantes de qualquer moda ou senso estético, escondiam coros cabeludos empesteados de piolhos. “Wagner Nabuco Maquiavel”, nosso governador, quer ter seu desfile final, seu momento de príncipe em sua Copa de mentiras, quer mudar para Europa como Joaquim Nabuco sem sair do Brasil, a custa do sucateamento da educação. Sua única campanha é oferecer ao mundo, uma farsa, um show, uma ilusão de felicidade durante um mês de futebol, e deixar o Estado da Bahia tão pobre e miserável quanto estava antes.
Nossa campanha, a de professores e de outros funcionários públicos, por outro lado, deverá ser também contra esse circo, esse casamento real da Bahia como empresariado nacional e internacional, numa Copa, que desviará bons quinhões do erário e dos interesses do estado da Bahia. Se não for assim, aquilo que poderia ser investido em saúde e educação, na melhoria e ampliação das universidades estaduais, por exemplo, escoará obscuramente numa Copa fantasiosa “para inglês ver”.

*Disponível em: http://greveuesb.blogspot.com/2011/05/desfiles-e-miserias-no-final-de-abril.html
**Doutor em Letras pela UFBA e professor Adjunto do DCHL/UESB