I
“Eu tenho nome. E quem não tem”? Os que o sabem o chamam. Alguns o diminuem. Os que não o sabem me chamam de “ei”, “moço”, “esse”, “aquele”, “032****”... Aqueles que gostariam de sabê-lo, o perguntam. As coisas têm nome. As que não têm, não existem ou não foram “trazidas a existir” ainda. Se você chamar uma cadeira de ventilador ou uma pá de balde, provavelmente, não se fará entender por não ter designado o objeto pelo nome correto, ou pelo menos, pelo nome que lhe é usualmente atribuído. Contudo, “As coisas que não têm nome são mais pronunciadas por crianças”, e por isso, a educação tem importante papel nesse processo nomeador.
No começo de seu desenvolvimento intelectual a criança aprende a chamar as coisas por nomes. Aprende sobre convenções presentes na gramática e na aritmética. Aprende sobre símbolos como as letras e os números e sobre seus significados. Aprende sobre as cores e suas variações. Aprende sobre os sons das coisas. Em suma, aprende a chamar as coisas pelo nome, ou por algum nome. Assim, a criança aprende que não pode “escutar a cor dos passarinhos”, como escreve Manoel de Barros, porque o “verbo escutar não funciona para cor, mas para o som”. Assim, o mundo fica etiquetado e arquivado por afinidades e funções. Assim, a vida é etiquetada junto com o mundo e a língua é a algema que prende as coisas aos seus conceitos.
Indubitavelmente, “nomeare humanum est”. Contudo, essa coisa de atribuir nomes e de aprender nomes é apenas um passo necessário para alcançar um estágio mais elevado, mas ainda não definitivo, da caminhada que culmina na elevação do espírito, por assim dizer. É preciso depois de ter aprendido, desaprender.
II
“No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo”.
Autores como Guimarães Rosa e Manuel de Barros escrevem em seu próprio idioma. Entretanto, um olhar biográfico mais atento revelará que eles só conseguiram reinventar a língua portuguesa ao seu modo porque a conheciam (e conheciam outras línguas), profundamente. Eles “souberam muito sobre”, antes de “não querer mais saber de”. E isso é revelado no “Livro das Ignorãnças”, onde M. Barros deixa claro o descomprometimento de sua poesia com as convenções da língua. Depois de saber ele quis ignorar, se desprender dos nomes. Depois de saber sobre a gramática, ele queria fundar a “agramática”. E fundou.
Tomar o que “é”, e que só “é” porque foi nomeado e atribuir a isso um novo significado, um significado que melhor lhe agrade, e estar, dessa forma, um tanto quanto livre do “assim das coisas”. Criar. Transcender. Esse é um começo, mas o caminho não se encerra no rompimento. E nem poderia ser assim.
“Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome”. E quando tiver nome? O que é mesmo que se quer? Será que esse desejo não se encerra apenasmente no desejo? Desse modo, saindo da agramática de M. de Barros e adentrando em um território de sensações, virtudes, sentimentos e afins, o “não nomear” se torna mais complicado. O “não nomear” se tornaria, sem o tanto necessário de equilíbrio, um regresso à adolescência da alma, por prevê uma busca somente pela busca, uma liberdade presa a inconformidade (porque se eu sou livre, sou livre para aceitar do mesmo modo que o sou para discordar) e uma crítica que só geraria mais crítica. Uma liberdade assim nos levaria a adolescência da alma e o nosso objetivo na condição de existentes humanos é elevar nossos espíritos a se expandirem o máximo possível para que finalmente possamos nos tornar crianças novamente.
III
O caminho não se encerra rompimento. E nem poderia ser assim. O que queremos é reestabelecer o elo entre as coisas. Já rompemos. O que desejamos é ligar. Não necessariamente ligar de novo (religare), mas ligar melhor.
Aprendemos quando crianças. Desaprendemos – ou aprendemos a desaprender – em um segundo momento, e agora, finalmente, iremos aprender como se fosse a primeira vez. E finalmente, iremos tomar o exemplo dos petizes: “A criança é a inocência, é o esquecimento, um novo começar, um brinquedo, uma roda que gira sobre si, um movimento, uma santa afirmação”, como disse Nietzsche sobre a terceira transformação do espírito em seu Also sprach Zarathustra.
Quando nascemos somos revirados. “Somos revirados. Assim nascemos. Reestabelecer a ordem é desfazer em nós a criatura”, é o que diz Simone Weil, em princípio, sobre a morte do “eu” e sobre um “tornar-se nada”. Reestabelecer a ordem que já foi quebrada pelo nascimento e pela educação que recebemos na infância. Ordem essa que buscamos erroneamente na adolescência da alma ao querer se desprender (“não nomear”) e sempre romper, sempre lutar, sempre desassossegar. Ordem que alcançamos nesse terceiro estágio da alma que chamarei de mais infância (já que o termo segunda infância se empregaria aos estágios cognitivos conceituados pela psicopedagogia).
“NÃO, NÃO MAIS BUSCAR: que seja esta, voz da madureza, a essência do seu grito”. As palavras iniciais da sétima elegia de Rilke combinam com esse sossego perene da mais infância. Sossego de não chamar “o mal de bem”. Sossego de não querer saber disso. Sossego de natureza por ter encontrado a essência das coisas, suas relações e saber o que elas são e dar a elas o nome e chamá-las pelo nome. Que coisas? Todas elas. Nós mesmos e todo o resto, sendo todo o resto o que é mais importante e nós mesmos o “todo o resto”, reconhecendo assim, o nada que somos e a grandiosidade do mundo (coisas) ao nosso redor.
Ah, a mais infância. Estágio onde a “energia atada” se torna “energia livre capaz de amoldar-se à verdadeira relação das coisas” (Weil). Estágio onde o “eu” não incomoda mais/tanto. E nem poderia, já que a criança é sempre o recomeço, já que a criança é toda recomeço. Justiça impregnada de amor universal que encontra a igualdade entre as coisas “pois nenhuma vale sem amor, pois todas valem pelo amor”, como disse Comte-Sponville revisando as palavras de Weil. Nesse “fim”, se é livre de si e livre dos conceitos do/no mundo. Nesse “fim” se pode chamar as coisas, cada uma pelo seu nome... E só assim, chamar as coisas pelo nome certo.
*Este texto consta mais como um escopo de uma discussão muito maior. Não pude (não quis, talvez) abarcar todos as nuances inerentes as idéias presentes neste, como por exemplo, as de cunho semântico e etimológico.
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